segunda-feira, 20 de junho de 2011

O que me dá medo.

- O que me dá medo é ficar assim como tu!
Disse-me ele, desse modo, de chofre, sem meias palavras, sem tergiversações e sem nenhuma consideração anterior.
- Assim como?
Perguntei meio assustado e contrariado. Tinha tomado banho mais cedo e, também por causa do frio da noite, me agasalhado mais. Havia preparado uma sopa com o que estava mais à mão e dentro da pequena panela ainda fumegante derramei uma generosa porção de azeite português, como fazia meu pai, e outra de queijo parmesão ralado. Fui para a sala, mais fria que o restante da casa, me sentei no sofá diante do televisor, joguei uma coberta sobre as pernas e estava atacando o creme intercalando o uso da colher com o do controle remoto à procura da programação menos pior.
- Velho e sozinho. Abandonado, sem sonhos e sem mais perspectivas, sem pessoas ao teu redor! Tornando-te apenas e tão somente espectador da tua própria vida. Nela, não deverias pensar em atuar sequer como figurante ou como personagem secundário. Protagonista é o que deverias ser. Deverias cuidar do roteiro e da direção. É o teu filme!
Baixei os olhos assim como que procurando porções menos quentes na beirada da vasilha para não queimar ainda mais a boca e entre os sons e imagens dos filmes repetidos, das pregações religiosas e dos comerciais que ainda pago para assistir, balbuciei:
- E você acha que gosto disto, que isso ocorre por minha livre escolha? Que foi isso o que escolhi pra mim?
- Se não foi o que planejaste, é assim que te encontras, é a isso que te submetes e ao que vais te adaptando! Acostumando-te com as coisas como quer que elas aconteçam, à tua feição, ao teu modo, fazendo tudo à maneira que te pareça mais confortável, sem desafios. Sem questionar os caminhos e paisagens que as circunstâncias e ocorrências escolheram para ti. Estás muito mais para árvore ressequida à espera da chuva do que para animal sedento à procura de água limpa e fresca. Quando o Raul escreveu “Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar...”, foi antevendo-te? Não moras em apartamento e nem tens a boca tão cheia de dentes, mas, de resto, parece a tua fotografia.
Tentei recordar o rascunho de roteiro que havíamos traçado há pouco mais de dois anos. As aposentadorias. As viagens. A mudança de residência e a maior proximidade com os filhos e netos. A maior convivência com os amigos. As caminhadas diárias nas manhãs e tardes junto ao mar. Vez ou outra um cinema, um teatro ou uma exposição. Escrever, pintar, gravar. Assistir à maestria e delicadeza com que ela realizava suas artes, injustamente chamadas de artesanato, como se demandassem criatividade menor.
Ergui-me da depressão existente no lado direito do sofá, onde com o tempo, meus ossos e minhas poucas nádegas cavaram seu lugar, desliguei tudo e fui dormir.
- O que me dá muito medo é ficar assim como tu!
Disse-me, por fim, o menino que ainda teima em morar dentro de mim e que, com certeza, aproveitará o meu sono para buscar por aí, os sonhos que escondi em algum lugar.

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