quinta-feira, 23 de julho de 2009

Renascimento

Numa destas noites estive no lançamento do livro de um grande amigo, a quem promovi ao degrau superior de irmão adotivo, e, entre os presentes, encontrei uma querida amiga que não via há muitos anos.
Conhecedora dos meandros da alma humana saiu-se logo com um “como você está lindo!”, deslavada mentira capaz, entretanto, de quebrar quaisquer resistências e amolecer corações por mais doloridos e empedernidos que estejam.
Depois de um reconstituinte, reconfortante e demorado abraço durante o qual escutei, apesar do silêncio, um seja forte, um sinto muito e um meus pêsames, disse, aí já claramente, com todas as letras e um sorriso nos olhos e nos lábios: “Vem ver minha filha”.
Fomos até o final da fila dos autógrafos e lá estava, guardando o lugar, uma linda moleca/mocinha de cabelos ondulados claros. Uma menina, no início da adolescência, de lindos e significativos olhos, bem vestida e bem tratada a demonstrar os cuidados maternos.
Minha amiga e o marido nunca tiveram filhos e resolveram presentear-se com aquela maravilha. Não sei como se deu a garimpagem, mas ficou-me claro que a pedra preciosa sabe exatamente de onde é originária. Diferentemente das corridas ao ouro, onde impera o segredo, neste caso a valiosa gema conhece ou sabe a exata localização da mina.
Além da imensa satisfação por encontrar estimados amigos rodeados de felicidades, nestes tempos tão difíceis para mim, a visão da menina a quem vou chamar de Renata, pelo maravilhoso renascimento, só comprova meu cansativo discurso de que todas as crianças são lindas. As condições e o meio em que crescem é que podem torná-las melhores ou piores, adultos bonitos ou feios (interna e externamente).
A ganância e o sistema de riqueza a qualquer custo é que impedem que toda e qualquer criança possa se tornar uma Renata, de infância e adolescência cheias de carinho, alimentação e cuidados e uma adulta, responsável, preocupada com os seus e com todos os outros.
O mesmo sistema perverso feito para impossibilitar que a maioria das crianças e jovens, sem a sorte da Renata, deixem de ser artistas ou médicos que possam curar as dores, as feridas e as doenças, da alma e do corpo, não num futuro distante, mas agora, hoje ou amanhã.
Impressionante além disso, pelo que vi nos olhos da minha amiga, como Renata, sem ser médica ou artista ainda, já deu conta de lhe prescrever sorrisos e olhos felizes.
Quem sabe um dia o mundo perceba que amor e felicidade são remédios dos quais se beneficiam quem os recebe e mais ainda quem os ministra.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Banzo

I
Alguns me dizem que você se foi porque sua missão aqui estava cumprida.
Como assim?
Já disse algumas vezes que se eu, teus filhos, netos, parentes e amigos tivéssemos sido consultados, unanimemente diríamos que não. Diríamos que você era absurdamente necessária e absolutamente insubstituível.
Digamos então que a esse destino seja impossível qualquer objeção. Restaria ainda a viagem em si, a forma como se deu.
Quem tem suas missões cumpridas despede-se dos parentes e amigos, avisa com antecedência, prepara as malas para a ida. Caso não necessite de alimentos, abastece-se ao menos de afagos e carinhos, mesmo os de última hora, ali ao pé do transporte.
Quem cumpriu sua missão, antes do embarque, abraça e beija. Olha nos olhos e não consegue impedir que os seus fiquem marejados. Que despedida é essa na qual apenas quem fica na plataforma, enquanto o comboio se afasta, chora?
II
Não consegui pintar ou imprimir mais nada. Quando a minha mesa de trabalho, freqüentemente, estava como agora, era você que dava jeito na bagunça. Era você que organizava, era você quem conseguia abrir uma clareira de trabalho em meio àquela selva de potes de tinta, pinceis, formões, goivas, rascunhos, solventes e panos sujos. Você desbravava aquelas florestas, feito Rondon, pacificando os elementos que acabariam virando quadros ou gravuras. Mais do que isso, era você quem se lembrava onde estavam guardadas as coisas todas. Era você quem tinha o inventário não escrito dos meus pertences, assim como tinha o das minhas dores.
III
Se a partida teve algum objetivo foi o de demonstrar o quanto fui egoísta e dependente de você. Já estava claro antes e mais ficou depois. O tratamento a que estou sendo submetido é o de choque. Me lembro de um conhecido nosso, alcoólatra, que foi internado e os médicos lhe ministravam suco de laranjas com doses cada vez menores de bebida alcoólica. Não sei se era o tratamento adequado e nem se ainda é aplicado. Na época achamos que o gradual tinha cabimento. O que me foi receitado é o da parada abrupta. Tudo o que eu tinha ao seu lado me foi retirado. Tudo o que me satisfazia foi suprimido. Assim de chofre, de um instante para o outro.A tua ausência, nestes exatos dois meses, tem provocado em mim, além das lágrimas e do imenso sentimento de perda, uma tristeza de manhã nublada, fria, com garoa. Daquele nosso conhecido, quando enxergava bichos sobre a geladeira, dizia-se que estava com delirium tremens. À meu respeito nada dizem os médicos. Esse sentimento, esse estado geral pode chamar-se simplesmente banzo, nostalgia, saudade. Gigantescas saudades.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Retrato em branco e preto


Muitas vezes escutei “Retrato em Branco e Preto” de Chico Buarque e Tom Jobim.
Uma das que me recordo, apesar da música ser de 1968, foi por volta de 1971/1972 quando ainda fazia curso pré-vestibular em São Paulo. Não sei se estava sendo tocada no rádio ou se algum dos alunos ou alunas a estava cantando. A segunda hipótese é a mais provável.
Subíamos as escadas do cursinho e quando olhei para cima procurando ver de onde vinha o canto, topei com a visão de bem desenhadas nádegas, parcialmente embaladas e protegidas por uma calcinha quadriculada alvinegra. A mini saia ora protegia ora mostrava o monumento (era um cursinho para arquitetura) e pensei, maldosamente, que sobre aquelas duas colunas ela poderia assentar o seu futuro. Não lembro quantos andares tinha o prédio, mas, tanto na minha opinião quanto na de alguns outros companheiros de degraus, a escadaria pareceu mais curta e menos cansativa naquela noite. Devo esclarecer que estávamos no centro de São Paulo, perto da avenida Nove de Julho, numa noite de meio de semana e, pelo menos no meu caso, depois de uma jornada cansativa de trabalho.
A moça era uma das alunas da minha classe e queira ou não a música passou a freqüentar a minha memória como trilha sonora do tal vídeo imaginário.
Eu ainda não namorava a Márcia.
Depois que nos casamos, poucos anos depois, vimos a tal moça, como apresentadora de televisão e comentei essa história. É claro que ela teve aquele sorriso tipo amarelo e a simulação de ciúme, mas selamos o tratado de paz com um carinho e um beijo.
Agora ouvi novamente a música. A primeira vez depois do acidente.
É impressionante o que pode fazer um choque ou uma perda tão grande.
O que me emocionou foram cenas bem mais recentes. O que me comoveu foi traduzir a letra em imagens das caminhadas que fazíamos. Foi rever, na memória, as idas e vindas da casa até a entrada do sítio, junto à estrada.
"Já conheço os passos dessa estrada...
Seus segredos sei de cor.
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar, tanto pior."
Quantas vezes andamos juntos por ali conversando ou rindo de alguma coisa?
A tarde em que caminhamos conversando sobre coisas do passado e nos sentamos, ali mesmo, no meio desse caminho, sobre a terra e a grama, e choramos juntos. Depois voltamos abraçados pra casa.
Quantas vezes escrevi sobre as andanças dos nossos pais e irmãos, já falecidos, por estas mesmas pedras e por este caminho enriquecido e particularizado pelas raízes das astrapéias?
Quantos desenhos, fotografias e gravuras já fiz deste caminho?
Apesar da constante e perene transformação, causada pelas chuvas, pela erosão, pelo andar até das formigas, pelo nascer e morrer das raízes, pelas marcas dos pés das pessoas ou dos pneus dos carros, não é errado dizer que conheço este caminho e suas pedras.
Menos errado ainda é dar razão ao Chico quando me relembra de que vou ficar ali sozinho.
Tem sido assim todos estes dias e noites.

"Novos dias tristes, noites claras,
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever."

Tem sido outros os retratos. Não mais juvenis ou brincalhões como os de outrora, mas aqueles profetizados pelo poeta:

"Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração."

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Fio de nylon

Hoje resolvi cortar a grama. Para não forçar demais as costelas, apanhei a roçadeira elétrica muito mais leve que a outra, à gasolina.
É impossível não lembrar de você nestas horas. A companhia para manter o gramado limpo. As botas de borracha. Andar na frente procurando a sujeira dos cachorros e retirá-la com a pá para que o fio de nylon não espalhasse bosta pra todos os lados, incluindo as pernas da calça. Juntar e recolher a grama para virar adubo. Inverter as posições, você acionando a roçadeira, eu ajudando. A impossibilidade de alcançar a grama e o mato do caminho até a porteira, apesar das extensões do fio elétrico.
Não há como não lembrar de você quando o fio tritura as folhas caídas da canforeira e o cheiro se espalha lembrando linimento para dores (totalmente ineficaz nos ferimentos invisíveis).
É impossível esquecer que no trágico dia passamos, a seu pedido, na concessionária para comprar o kit de nylon para a roçadeira mais potente e com muito mais autonomia. Eu dizendo que ia comprar, mas que seria para que você usasse. Você sorrindo dizendo que ia aprender. Não há como não pensar, inutilmente, que o tempo gasto na compra poderia ter evitado o acidente.
Afastar do pensamento o propósito de deixar a grama crescer abandonada, mais ou menos como eu me sinto sem a esposa, sem a amiga, sem a companheira, sem a amante, sem a enfermeira, sem a minha melhor parte. Manter afastada essa idéia mesmo depois de ter a certeza de que, você não vai apreciar e comentar o resultado.
Tentar deixar o gramado limpo, com jeito de tratado, mais pelo trabalho que distrai e exercita, pelo calor do sol nestes dias tão frios e pelo eco de sua voz sempre que o fio de nylon acaba ou prende no cabeçote difícil de abrir:
-Troca o fio pra mim?