domingo, 5 de dezembro de 2010

Aniversário

Neste dia, há exatos dois anos, recebi uma mensagem no celular:
“Parabéns! Que Deus ilumine essa cabeça fantástica com tanta criatividade. Amo você demais. Beijos.”
Vinha da Márcia e estava endereçada ao “Meu Flávio” que é como o meu celular estava identificado no dela..
Cinco meses e meio depois veio o acidente e a sua partida. Depois veio outro celular que me foi dado pelo Fábio e a mensagem recebida se perdeu.
Há poucos dias, mexendo no celular que lhe pertencia, encontrei os votos na pasta das mensagens enviadas. Já havia feito créditos no telefone dela para não perder a linha na vã esperança de receber outras mensagens ou ligações, crença que o tempo vai desvanecendo.
Fazendo o balanço desse período fica a impressão de que também a criatividade se dissipou. Quase mais nada de gravuras ou pinturas saiu da tal cabeça fantástica como se a partida dela as tivesse levado consigo. Como se a cabeça ou a criatividade somente existissem com a presença dela ou o apoio e incentivo que dava. Sobraram uns poucos escritos nos quais exibo as tripas e as vísceras despudoradamente. Mesmo dos escritos, andam ausentes os contos e as poesias. Devo ter desaprendido. Isso me faz pensar que além da casa, das roupas e das comidas era ela quem cuidava da minha cabeça. Provavelmente, da mesma forma que era ela quem ordenava minha mesa de trabalho, a tranqüilidade e o estímulo que me dava ordenavam meus pensamentos.
Tenho dito e escrito que o casamento é convivência. É o dia a dia. É o esfregar dos corpos e dos espíritos a moldar as diferenças e as coincidências. A ausência dessas fricções, incluindo os atritos, não deixa criar relações duradouras. Como nas ausentes gravuras. A falta de incisões e de lixas não produz matrizes. E apenas as matrizes originam frutos.
Continuo aguardando que a oração, pedido ou voto feito por ela, ainda que exagerado, seja atendido. Ainda que não fantástica ou criativa, seja ao menos iluminada.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Para Célia, André e Feto

Há cerca de dois meses um casal ficou grávido. Por uma daquelas coincidências da vida, há cerca de dois meses mais quarenta e quatro anos nascia uma menina que viria a ser a caçula de uma família cujo pai e mãe eram os meus. O filho mais velho, dos três moleques, cometeu um arremedo de poesia que falava da data do nascimento, quinze de setembro de sessenta e seis, e dos desejos de que a recém nascida fosse feliz.
Acho que a menina é feliz e está em vias de ter o mais desejado e mais feliz período da sua vida, em que pesem os enjôos e o peso adicional que terá de carregar pelos próximos quase sete meses.
Lembro-me de fazer dormir a tal menina, fazendo-lhe cafunés nos cabelos loiros e de pedir-lhe os mesmos cafunés recostando minha cabeça no seu colo pequeno. Fazê-la dormir rapidamente me fez acreditar que eu era um mago de criancinhas. Acreditei que as podia fazer parar de chorar e que as fazia sorrir quando adormeciam. Exercitei os mesmos poderes quando nasceram os meus três, hoje, marmanjos.
Ainda não se sabe o sexo da criança. Três filhos meus, três filhas do meu irmão do meio e dois filhos e duas filhas do mais novo, empate portanto, não permitem prognósticos quanto ao futuro rebento. O que espero e desejo ardentemente é que tanto a mãe quanto a criança transponham esse período com a mais absoluta saúde física e mental. Que eu ainda tenha suficiente saúde física e mental para fazê-la dormir sorrindo, por tantas vezes quantas fiz com a mãe. Talvez já não tenha capacidade para fazer poesias. Talvez já tenha suficiente discernimento para não cometer outra poesia.
No sábado, quando recebi a notícia e depois, pensei no quanto estariam felizes meus irmãos, meu pai, minha mãe e a Márcia se ainda estivessem aqui. Pensei na felicidade que sentiria a Márcia ao saber da novidade da mais do que cunhada, quase irmã, e no que sentiria minha mãe, lá no próximo mês de junho, com quase oitenta e sete anos, tendo nos braços a filha ou o filho, décimo primeiro neto, de sua única menina. Pensei no rosto de falso carrancudo de meu pai com os olhos marejados de lágrimas abençoando o pequeno ou pequena dizendo “Benza-te Deus”.
Pensei no coral de todos nós, presentes e ausentes, dizendo “Assim Seja, Amém”.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Impotência

Não sei porque razões resolvo me meter na vida dos outros, quando não consigo cuidar sequer da minha. Pode ser coisa da idade, às vésperas de ficar ainda mais avançada, como se as idades não avançassem todos os minutos de todos os dias e esperassem um único dia do ano para saltar mais um degrau.
Não deve ser isso já que me intrometo há muitos e muitos anos tentando dizer para as pessoas coisas que não consigo dizer aos meus próprios ouvidos. Quem sabe seja mesmo a maldição da Deise, como já escrevi aqui há algum tempo, me rogando uma tristeza que não queria ter. Quem sabe seja a vontade de fazer mais felizes as pessoas que me cercam na tentativa de me apropriar de parte dessa felicidade. Quem sabe seja uma vocação inerente para enxerido. Coisa tipo faça o que eu digo e não o que eu faço.
De concreto, neste final de semana, uma outra menina, que eu não consigo esconder que adoro, voltou a derramar rios de lágrimas, que atingiram meus olhos, ao contar do fim ou interrupção de um romance. De novo espero que mais do que férias de uma relação que apenas engatinhava, se trate de um final de semana prolongado no qual cada um viaja para local distante. De novo espero que as farpas atiradas dissipem-se rapidamente e o amor de ambos reencontre os melhores dias como se encontravam ainda há pouco.
Novamente volto a desejar que as tolices ou bobagens ditas ou cometidas percam completamente a importância afim de que apenas o carinho que sentiam, um pelo outro, prevaleça.
Não sei se é orgulho ou intolerância. Se é falta de companheirismo ou solidariedade ou se é egoísmo. O que gostaria mesmo é que se tratasse apenas de uma pequena rachadura, daquelas que ocorrem em quase todas as casas até que o solo e as paredes se acomodem.
O que me faria feliz era não sentir esta impotência para resolver problemas, meus e dos outros. Era poder, num passe de mágica, transformar as lágrimas da minha moleca em sorrisos, a distância em presença, a tristeza em felicidade, o abandono em companhia. Criar barreiras para impedir que, mesmo por segundos, o amargor substituísse sua doçura. Poder fazer que a meiguice estampada no seu rosto ficasse ali tatuada para sempre e que os seus olhos só pudessem ficar vermelhos em razão da água salgada dos banhos de mar.