sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Sobre meu pai, injeções e punhaladas.

Meu pai aplicava injeções.
Não era médico, enfermeiro ou farmacêutico e não sei dizer onde e como adquirira tal habilidade.
Alguns dirão que espetar uma agulha num repolho, numa melancia ou numa bunda não requer assim tanta prática ou habilidade. Assino embaixo! O que fazia dele um mestre era o paciente jamais sentir qualquer dor, por menor que fosse. Obviamente refiro-me aos donos e donas das bundas ou músculos e não aos repolhos ou melancias.
Todos nós de casa, os parentes mais próximos e os vizinhos sempre o procuravam quando precisavam receber, por essa via, algum medicamento. Apesar de saber fazê-lo, por precaução e zelo, não aplicava injeções intravenosas.
Lembro-me de uma das vezes em que aplicou injeções em minha avó, mãe dele, quando ela lhe perguntou se ainda demoraria a picada ao que ele respondeu-lhe que já tinha terminado.
A mágica, segundo ele, consistia em desferir com a ponta de um dedo leves batidas sobre o ponto da aplicação. Com isso ele sentia se o músculo estava ou não retesado. Quando o sentia relaxado substituía a batida do dedo pela introdução da agulha e a injeção propriamente dita. Imediatamente em seguida voltava a desferir as ritmadas batidas com o dedo, por mais alguns instantes, o que segundo ele ajudava também a espalhar o remédio. Tudo transcorria numa única seqüência, como numa bem ensaiada apresentação. Nós os seus pacientes, e esse foi o caso de minha avó, quase nunca distinguíamos o dedo da agulha. Era como se ele, inquebrantável amante da verdade, da honestidade e da franqueza, se permitisse uma daquelas enganações benéficas intrínsecas aos mágicos ou ilusionistas.
É possível que facadas ou punhaladas, nada benfazejas, se precedidas dos tradicionais e habituais tapinhas nas costas surtam os mesmos efeitos. Aqui como lá, me fica a impressão de que as pancadinhas anteriores como que amortecem a área do ferimento, mas são ambas, senão apenas as posteriores que “distraem” a dor.
No caso das punhaladas nas costas, parece-me que o que mais dói não é o momento do golpe, a ponta do punhal, tal qual a ponta da agulha, penetrando na carne. O dolorido é o pós-trauma, a ferida aberta, a convalescença, a incerteza de recobrar a integridade.
Por mais absurdo que pareça, o que minoraria a dor seriam as pancadinhas sobre a região do corte. Minúsculas dores distraindo a dor maior. O cérebro recebendo afagos (ou as minúsculas dores se comparadas com a dor maior) no entorno da lesão profunda.
Como se não conseguisse ver ou encontrar o joio entre os amarelos montes de trigo.
Meu pai (homem que nunca apunhalou quem quer que seja), sua benção!