segunda-feira, 19 de abril de 2010

As mortes de nossas mães.

Apesar de algumas opiniões em contrário, como dizia o Altemar Dutra, sentimental eu sou.
Ontem e hoje vi algumas reportagens a respeito da morte da mãe de Roberto Carlos, Laura Moreira Braga com 96 anos de idade, a Lady Laura da música que ele fez homenageando-a.
Notei o cuidado ao dar a notícia, das pessoas que o cercam há muitos anos, quando ele ainda se apresentava nos Estados Unidos. As emissoras apresentaram imagens do afeto que um nutria pelo outro, como aliás acontece com a quase totalidade dos filhos e mães.
Com relação ao cantor, o grande azar da vida dele talvez tenha sido nascer no Brasil. Fosse espanhol ou estadunidense seguramente seria idolatrado como um dos maiores compositores e interpretes da música popular mundial, feito uma penca de medíocres (quando comparados a ele) tipo Júlio Iglesias ou Manolo Otero.
O que me pegou pela emoção, entretanto, não foi a eventual injustiça contra o artista, já que ele tem quem e como se defender disso com muito maior condição e propriedade que eu.
O que me causou um nó na garganta, foi lembrar-me de minha própria mãe e da minha mulher e mãe dos meus filhos. Por mais paradoxal que pareça, acabei sentindo uma grande inveja do cantor.
A Laura, mãe dele, morreu com 96 anos, enquanto que a minha, Mathilde, faleceu com 72 e a Márcia, mãe dos meus filhos, nos deixou a todos nas vésperas de completar apenas 54 anos. Brutais diferenças.
Além da inveja pelo menor tempo que convivemos com as nossas Ladies, sobrou-me a incompetência de compor-lhes músicas, o que me obriga a tomar emprestados versos que se apliquem as nossas Lady Mathilde e Lady Márcia.

“Quantas vezes me sinto perdido
No meio da noite
Com problemas e angústias
Que só gente grande é que tem
Me afagando os cabelos
Você certamente diria
Amanhã de manhã você vai se sair muito bem.”
“Nos momentos alegres
Sentado ao seu lado, eu sorria
E, nas horas difíceis
Podia apertar sua mão”

Mais ainda, algumas vezes, como encerra a canção, sem nada dizer, vocês diziam tudo o que precisávamos escutar de vocês.
Pela proximidade e pelo carinho demonstrados, a partida de Laura vai abrir um enorme buraco na vida de Roberto Carlos. Os nossos, no meu caso duplo, com as ausências das nossas Senhoras, já estão abertos faz algum tempo.

sábado, 17 de abril de 2010

Buracos pedagiados

Rodovia pedagiada é aquela na qual se cobram tributos (o famoso pedágio) de quem dela se utiliza. São caracterizadas por aquelas enormes baias (semelhantes às utilizadas nas corridas de cavalos) que adornam as chamadas praças de pedágio. Em tese todos nós já pagamos impostos suficientes para que possamos trafegar por onde bem entendermos. Em tese, também, esses impostos destinam-se, em parte, a manter conservadas as vias por onde passamos. As versões oficiais nos atocham os pedágios goela abaixo com a lenda de que as estradas pedagiadas serão primorosamente mantidas. Nós, como os referidos cavalos das baias, acreditamos.
De vez em quando acredito que o Vale do Ribeira é uma região destinada a testar nossas reações frente aos desmandos administrativos. Com quase certeza, um colegiado de especialistas fica examinando nosso comportamento, diante das cagadas e sacanagens cometidas, para avaliar em que exato instante estourará nossa paciência. Esse trabalho acadêmico será depois apresentado em congressos internacionais.
O que está em curso, atualmente, estou certo disso, é um estudo para ver como reage a população diante de uma espetacular fonte de lucros: Os buracos pedagiados.
Grosso modo, toma-se uma estrada federal, construída com recursos pagos pelos cofres públicos e oferta-se a mesma à iniciativa privada, que de bom grado a aceita. Imediatamente constroem-se as tais praças (nome agradável para o local onde se tomará nosso dinheirinho). Depois se corta o mato e o capim que foi deixado crescer enquanto era pública a rodovia. Em seguida tampam-se alguns buracos com alguma massa vagabunda que resista a alguns pingos de chuva. A seguir já se começam a encher os gigantescos cofres das empresas que receberam de presente as vias. O próximo passo é aguardar a época das chuvas e deixar esburacar.
A BR 116, principalmente no trecho do Vale, por onde mais trafego, foi generosamente aquinhoada pelas crateras. Obviamente se divulgará que as mesmas devem-se às chuvas, o que não resiste a mais reles das argumentações. Por mais estranho que possa parecer, as chuvas caem desde que o mundo é mundo e isso não deveria ser mais novidade pra ninguém. Muito mais recentes são o asfalto de terceira ou quarta categoria e a safadeza de se trabalhar tão mal.
Aqui é absolutamente comum ver-se o asfaltamento “self service”. Um caminhão parado sobre a pista carregado com um monte de alguma coisa parecida com concreto asfáltico, um funcionário e uma pá. Entre um veículo e outro, o funcionário, com boa pontaria decorrente da experiência, arremessa, de cima da caçamba, uma pazada ou mais da tal coisa. Os veículos (os nossos) que passarem e não desviarem dos buracos é que vão compactar o material. Por esse serviço prestado à Concessionária, o usuário da rodovia, além de nada receber, ainda paga o pedágio normalmente (como funcionários temporários dessas empresas, deveríamos recorrer à Justiça do Trabalho).
Em razão da absurda exigüidade de tempo entre o porco conserto e o reabrir do buraco não é de causar espanto descobrir-se que a tal massa do remendo é feita com açúcar ou sal. Só assim para resistir tão pouco aos pingos das chuvas.
Se o subprocurador geral da República, Aurélio Vieira Virgílio Rios, já havia afirmado que “As empresas que administram as rodovias privatizadas têm lucros exorbitantes só comparáveis aos do tráfico internacional de drogas”, imagine-se o que dirá com a fabulosa invenção dos buracos pedagiados.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

De andanças, adoções e garimpagens

No último dia 06, às 18:33 horas, com 50 centímetros de comprimento e 3,395 quilogramas aportou neste mundo velho sem porteiras, o filho de Yza e Renato, a quem, me deram a honra de chamá-lo Flávio. A Yza que conheci num momento de extrema dificuldade foi se tornando assim como que uma querida filha adotada, dona de uma formidável capacidade de dar a volta por cima (mestre Paulo Emílio Vanzolini que me perdoe mas ela é a personificação do seu “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”). Dotada de um impressionante poder de transformar dores e lágrimas em alegrias e sorrisos, a mãe, certamente, saberá como dar ao xará a atenção e os carinhos que podem lhe ter sido negados quando era ela mesma tão pequena. Por certo a generosidade e a responsabilidade de ambos, Renato e Velyza, proporcionarão ao menino o suporte físico e afetivo para que se torne um ser humano digno e, em decorrência, capaz de fazer diferença neste mundo que se lhe descortina agora.
Coincidentemente, um outro Renato (o Zé, um dos irmãos que tive a felicidade de adotar pelo caminho) já tinha me feito surpresa semelhante quando do nascimento de uma linda menina (hoje moça encantadora) filha dele e da Samira. Conspire o Universo para que o recém nascido possa receber também a mesma dose de inteligência, simpatia e boa ventura que coube à Flávia.
Resta a orgulhosa certeza de que turrão, chato e radical devo ter deixado escapar, num descuido, alguma coisa que marcou positivamente essas pessoas. Estes imerecidos afagos e descabidas homenagens fazem parte da herança imaterial que vou deixar aos meus filhos e netos, como já ocorria com uns escritos e depoimentos que guardo comigo. Sobra a convicção de que os amigos (parentes de sangue ou de andanças) são como exímios garimpeiros que conseguem enxergar dentro da bateia, entre a água turva, o lodo e a sujeira, o brilho da pequenina porção de metal precioso que cada um de nós carrega dentro de si.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Compartilhar despertares

Se eu pudesse definir, de maneira absolutamente curta, o que é casamento, diria “dormir junto”. Talvez melhor ainda seria “acordar junto”. É claro que a definição estaria fundada na minha própria experiência e expressaria a redução das reduções de uma relação absolutamente complexa. Sei de casos em que casais dormem em camas e até em casas separadas, mas, pra mim, ainda valem os termos quarto do casal, cama de casal e outros significando a mesma união de corpos e espíritos, de maneira continuada.
Quando falo em dormir juntos, também não estou me referindo ao ato sexual que exige o estar acordado. É o dormir e o acordar com alguém ao seu lado. O conforto e a segurança da pessoa amada ao alcance de um sussurro ou de um toque. O calor de um outro corpo nas noites frias do inverno. O desconforto de um ronco ou de um braço quente sobre o corpo quente numa noite de verão, o virar e desvirar durante o sono. O acordar com o cabelo desarrumado, diferentemente das bobagens dos filmes e das novelas em que os mocinhos e as mocinhas dormem e acordam maquiados, penteados e com o refrescante hálito dos Alpes suíços.
Uma coisa quase presume outras. Café da manhã e jantar juntos, por exemplo. Conversas sobre os projetos ou as ocorrências do dia, tanto as agradáveis quanto as indesejáveis. As agradáveis melhoram e afagam os espíritos de ambos. As desagradáveis são mais bem toleradas e suportadas, quando divididas ou compartilhadas. Noutras ocasiões é simplesmente o ombro ou o ouvido amigo a escorar ou escutar as palavras que deixaram de ser ditas durante todo o dia e que precisam ser colocadas pra fora para evitar o estouro das nossas represas internas.
Permanecem as individualidades. O trabalho de cada um, os hábitos mais arraigados, os passatempos, mas mesmo estes acabam sendo influenciados pela companhia e pela convivência.
Como já escrevi, trata-se de construir um novo ser composto de outros dois, como num jogo de encaixes no qual as peças vão se polindo e ajustando até formarem um só conjunto.
Há quem diga que não é mais assim. Que isso é coisa do passado. Que as relações duradouras estão fora de moda. Que a convivência desgasta a relação. Acredito e espero que não.
Esta semana uma menina que eu adoro e um rapaz de muita sorte resolveram dividir uma casa e as próprias vidas. Depois de um namoro de muitos telefonemas e encontros aos finais de semana, feriados e férias, Thais e Antonio vão compartilhar diuturnamente despertares.
Faço votos que a inteligência de ambos e o amor que sentem possam contornar ou suplantar os problemas e dificuldades que certamente virão. Que cada arranhão na convivência sirva de degrau para aprimorar a felicidade da dupla.
Que a advogada e o médico reservem tempo e espaço para cuidarem bem um do outro e que cliente nenhum receba mais atenção do que as metades que começaram a formar um único todo. Felicidades!

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Chagas e cicatrizes

Fui retirado à força de um casamento que durou cerca de trinta e cinco anos.
Naqueles dias, há cerca de dez meses, escrevi sobre a perda de uma parte do próprio corpo, de um membro, uma amputação.
Depois, o tempo mais o instinto da própria sobrevivência foram cauterizando umas feridas e escondendo outras como se o pó das ruas ou a antiga sulfa fosse se depositando sobre as chagas.
Por mais estranho que possa parecer as cicatrizes físicas, expostas, vão se incorporando ao nosso corpo e, boa parte do tempo, nos esquecemos delas. Vamos nos acostumando às marcas ou à falta de parte de um dedo como se tivéssemos nascido assim mesmo.
As que, porém, se escondem sob o couro cabeludo, ficam indo e vindo, com maior ou menor freqüência ou com mais ou menos intensidade dependendo do estímulo que recebam. Algumas delas, que julgamos totalmente curadas, repentinamente voltam como se acionadas por um interruptor invisível. É como as lâmpadas das vias públicas acesas automaticamente pelo escurecer dos fins de tarde ou dos prenúncios das tempestades. É o local do acidente, uma noite chuvosa, um dia de solidão ou a quebra de antigas rotinas. Aprender ou reaprender as coisas simples do dia a dia como as tarefas da casa. É quebrar um prato ou copo ao lavar a louça. Estragar uma roupa ao lavar ou passar as próprias vestes. Varrer ou lavar o chão. É a constatação do desamparo, o desassossego . É a percepção da incerteza do amanhã, por mais que todos os amanhãs tenham sido sempre incertos.
O mais plausível é que feridas profundas e amputações jamais cicatrizem. Num e noutro caso, físicas ou psicológicas, de vez em quando voltam a embargar nossa voz e tornam a sangrar. Quase sempre pelos olhos. Não mais aquela cor viva, encarnada, escarlate. Agora são gotas de um sangue translúcido, incolor, que inundam nossos olhos e escorrem pelo rosto a nos lembrar da imensa quantidade de retalhos que compõe a colcha da nossa existência.