segunda-feira, 5 de abril de 2010

Chagas e cicatrizes

Fui retirado à força de um casamento que durou cerca de trinta e cinco anos.
Naqueles dias, há cerca de dez meses, escrevi sobre a perda de uma parte do próprio corpo, de um membro, uma amputação.
Depois, o tempo mais o instinto da própria sobrevivência foram cauterizando umas feridas e escondendo outras como se o pó das ruas ou a antiga sulfa fosse se depositando sobre as chagas.
Por mais estranho que possa parecer as cicatrizes físicas, expostas, vão se incorporando ao nosso corpo e, boa parte do tempo, nos esquecemos delas. Vamos nos acostumando às marcas ou à falta de parte de um dedo como se tivéssemos nascido assim mesmo.
As que, porém, se escondem sob o couro cabeludo, ficam indo e vindo, com maior ou menor freqüência ou com mais ou menos intensidade dependendo do estímulo que recebam. Algumas delas, que julgamos totalmente curadas, repentinamente voltam como se acionadas por um interruptor invisível. É como as lâmpadas das vias públicas acesas automaticamente pelo escurecer dos fins de tarde ou dos prenúncios das tempestades. É o local do acidente, uma noite chuvosa, um dia de solidão ou a quebra de antigas rotinas. Aprender ou reaprender as coisas simples do dia a dia como as tarefas da casa. É quebrar um prato ou copo ao lavar a louça. Estragar uma roupa ao lavar ou passar as próprias vestes. Varrer ou lavar o chão. É a constatação do desamparo, o desassossego . É a percepção da incerteza do amanhã, por mais que todos os amanhãs tenham sido sempre incertos.
O mais plausível é que feridas profundas e amputações jamais cicatrizem. Num e noutro caso, físicas ou psicológicas, de vez em quando voltam a embargar nossa voz e tornam a sangrar. Quase sempre pelos olhos. Não mais aquela cor viva, encarnada, escarlate. Agora são gotas de um sangue translúcido, incolor, que inundam nossos olhos e escorrem pelo rosto a nos lembrar da imensa quantidade de retalhos que compõe a colcha da nossa existência.

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