quinta-feira, 9 de julho de 2009

Retrato em branco e preto


Muitas vezes escutei “Retrato em Branco e Preto” de Chico Buarque e Tom Jobim.
Uma das que me recordo, apesar da música ser de 1968, foi por volta de 1971/1972 quando ainda fazia curso pré-vestibular em São Paulo. Não sei se estava sendo tocada no rádio ou se algum dos alunos ou alunas a estava cantando. A segunda hipótese é a mais provável.
Subíamos as escadas do cursinho e quando olhei para cima procurando ver de onde vinha o canto, topei com a visão de bem desenhadas nádegas, parcialmente embaladas e protegidas por uma calcinha quadriculada alvinegra. A mini saia ora protegia ora mostrava o monumento (era um cursinho para arquitetura) e pensei, maldosamente, que sobre aquelas duas colunas ela poderia assentar o seu futuro. Não lembro quantos andares tinha o prédio, mas, tanto na minha opinião quanto na de alguns outros companheiros de degraus, a escadaria pareceu mais curta e menos cansativa naquela noite. Devo esclarecer que estávamos no centro de São Paulo, perto da avenida Nove de Julho, numa noite de meio de semana e, pelo menos no meu caso, depois de uma jornada cansativa de trabalho.
A moça era uma das alunas da minha classe e queira ou não a música passou a freqüentar a minha memória como trilha sonora do tal vídeo imaginário.
Eu ainda não namorava a Márcia.
Depois que nos casamos, poucos anos depois, vimos a tal moça, como apresentadora de televisão e comentei essa história. É claro que ela teve aquele sorriso tipo amarelo e a simulação de ciúme, mas selamos o tratado de paz com um carinho e um beijo.
Agora ouvi novamente a música. A primeira vez depois do acidente.
É impressionante o que pode fazer um choque ou uma perda tão grande.
O que me emocionou foram cenas bem mais recentes. O que me comoveu foi traduzir a letra em imagens das caminhadas que fazíamos. Foi rever, na memória, as idas e vindas da casa até a entrada do sítio, junto à estrada.
"Já conheço os passos dessa estrada...
Seus segredos sei de cor.
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar, tanto pior."
Quantas vezes andamos juntos por ali conversando ou rindo de alguma coisa?
A tarde em que caminhamos conversando sobre coisas do passado e nos sentamos, ali mesmo, no meio desse caminho, sobre a terra e a grama, e choramos juntos. Depois voltamos abraçados pra casa.
Quantas vezes escrevi sobre as andanças dos nossos pais e irmãos, já falecidos, por estas mesmas pedras e por este caminho enriquecido e particularizado pelas raízes das astrapéias?
Quantos desenhos, fotografias e gravuras já fiz deste caminho?
Apesar da constante e perene transformação, causada pelas chuvas, pela erosão, pelo andar até das formigas, pelo nascer e morrer das raízes, pelas marcas dos pés das pessoas ou dos pneus dos carros, não é errado dizer que conheço este caminho e suas pedras.
Menos errado ainda é dar razão ao Chico quando me relembra de que vou ficar ali sozinho.
Tem sido assim todos estes dias e noites.

"Novos dias tristes, noites claras,
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever."

Tem sido outros os retratos. Não mais juvenis ou brincalhões como os de outrora, mas aqueles profetizados pelo poeta:

"Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração."

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