quarta-feira, 29 de junho de 2011

Conjunções adversativas

Independentemente da violência que o atinja, sempre há um depois que, via de regra, é menos contundente que a pancada anterior. Socorro-me dos antigos ditados tipo “Depois da tempestade sempre vem a bonança” ou de canções alardeando verdades como “Quem não tem mais nada a perder, só vai poder ganhar”.
As bonanças ou os ganhos não parecem nada claros quando as dores são ainda insuportáveis. Com certeza, entretanto, as folhas que caíram ou a chegada da noite fria e escura são, pela manhã, substituídas por novos e viçosos brotos e pelo calor e luz do sol.
Sempre acabam surgindo novas oportunidades de refazer ou reconstruir partes do que foi despedaçado. É assim na fantástica arte de viver a vida. Quando o chão é o que de mais próximo há no seu campo visual, surge providencialmente uma mão que o ajuda a erguer-se. Se depois de algum tempo o socorrista se afasta, fica registrado o carinho e a dedicação de quem o auxiliou a pôr-se em pé novamente, ainda que sangrem as feridas e escoriações e mesmo que os primeiros passos sejam cambaleantes.
Isto vale para ruínas, tsunamis, desempregos inesperados e amores findos. Quase sempre, não é muito recomendável acostumar-se com as calmarias, com os ventos a favor ou com a plena felicidade. Mas que graça teria a vida se nos pautássemos principalmente pela desconfiança e pelo pé atrás? Que prazer haveria em imaginar que a brisa que afaga o rosto pode transformar-se em furacão? Que a onda mansa que lambe nossos pés vai acabar nos afogando? Que a dedicação ao trabalho vai se converter no pé na bunda? Como não sorver até a última gota os “Eu não vivo sem você”, “Você é a coisa mais importante da minha vida” ou “Quero estar todos os minutos ao seu lado”? Prá que imaginar o silêncio e a solidão que virão depois, desperdiçando os doces sabores desses momentos?
Há que se agradecer esses tempos, por mais fugazes que sejam. Há de se bendizer essas primaveras extra-calendários como se fossem milagres. Como se a ciência houvesse descoberto células tronco que reconstituíssem desejos e sentimentos avariados.
O que causa mais dissabor são as tempestades de conjunções adversativas. Poréns, contudos, todavias e entretantos despencando dos céus como grossas gotas ou granizos. O doce encanto dos poemas lidos, vistos ou sentidos azedando-se pelo excesso ou fermentação do mas. Palavrinha simples, barata e fácil de usar, encontrável em qualquer esquina ou mercadinho, como o sal.
- Você é um ótimo funcionário, porém...
- Adoro sua companhia, entretanto...
- Você não tem noção do bem que me faz, mas...
O uso do sal pode tornar mais saborosos ou intragáveis os alimentos. O exagero deste, contudo, pode ser minimizado adicionando-se algumas batatas descascadas à panela do cozimento. Relações que abusam das conjunções adversativas, não têm remédio. Soam falsas e acabam por si mesmas destinadas ao descarte.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Habemus nepos

Depois de tratativas que duraram cerca de nove meses, por volta do meio dia de hoje, viu-se uma fumacinha branca saindo das torres do Hospital e Maternidade Ana Costa de Santos/SP. Da mesma forma que reunem-se os cardeais para escolher um novo papa, ao final da reunião de médicos, anestesistas e enfermeiras, foi comunicado ao público em geral que acabara de chegar, vindo do útero materno, Luiz Vittor Pedro de Moraes, com 47 centímetros e cabelos claros como os da mãe.
Em Roma, declara-se solenemente "Habemus papam" para que o mundo saiba que há um papa novo. Aqui e agora, solenemente declaro que tenho um sobrinho novo:
- HABEMUS NEPOS!
Parabéns e muitas felicidades ao André, à Célia e ao Luiz.

O que me dá medo.

- O que me dá medo é ficar assim como tu!
Disse-me ele, desse modo, de chofre, sem meias palavras, sem tergiversações e sem nenhuma consideração anterior.
- Assim como?
Perguntei meio assustado e contrariado. Tinha tomado banho mais cedo e, também por causa do frio da noite, me agasalhado mais. Havia preparado uma sopa com o que estava mais à mão e dentro da pequena panela ainda fumegante derramei uma generosa porção de azeite português, como fazia meu pai, e outra de queijo parmesão ralado. Fui para a sala, mais fria que o restante da casa, me sentei no sofá diante do televisor, joguei uma coberta sobre as pernas e estava atacando o creme intercalando o uso da colher com o do controle remoto à procura da programação menos pior.
- Velho e sozinho. Abandonado, sem sonhos e sem mais perspectivas, sem pessoas ao teu redor! Tornando-te apenas e tão somente espectador da tua própria vida. Nela, não deverias pensar em atuar sequer como figurante ou como personagem secundário. Protagonista é o que deverias ser. Deverias cuidar do roteiro e da direção. É o teu filme!
Baixei os olhos assim como que procurando porções menos quentes na beirada da vasilha para não queimar ainda mais a boca e entre os sons e imagens dos filmes repetidos, das pregações religiosas e dos comerciais que ainda pago para assistir, balbuciei:
- E você acha que gosto disto, que isso ocorre por minha livre escolha? Que foi isso o que escolhi pra mim?
- Se não foi o que planejaste, é assim que te encontras, é a isso que te submetes e ao que vais te adaptando! Acostumando-te com as coisas como quer que elas aconteçam, à tua feição, ao teu modo, fazendo tudo à maneira que te pareça mais confortável, sem desafios. Sem questionar os caminhos e paisagens que as circunstâncias e ocorrências escolheram para ti. Estás muito mais para árvore ressequida à espera da chuva do que para animal sedento à procura de água limpa e fresca. Quando o Raul escreveu “Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar...”, foi antevendo-te? Não moras em apartamento e nem tens a boca tão cheia de dentes, mas, de resto, parece a tua fotografia.
Tentei recordar o rascunho de roteiro que havíamos traçado há pouco mais de dois anos. As aposentadorias. As viagens. A mudança de residência e a maior proximidade com os filhos e netos. A maior convivência com os amigos. As caminhadas diárias nas manhãs e tardes junto ao mar. Vez ou outra um cinema, um teatro ou uma exposição. Escrever, pintar, gravar. Assistir à maestria e delicadeza com que ela realizava suas artes, injustamente chamadas de artesanato, como se demandassem criatividade menor.
Ergui-me da depressão existente no lado direito do sofá, onde com o tempo, meus ossos e minhas poucas nádegas cavaram seu lugar, desliguei tudo e fui dormir.
- O que me dá muito medo é ficar assim como tu!
Disse-me, por fim, o menino que ainda teima em morar dentro de mim e que, com certeza, aproveitará o meu sono para buscar por aí, os sonhos que escondi em algum lugar.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Cabrito bom não berra!

Ia eu pela estrada esburacada.
Caminhão velho cheio de blocos subindo lento à minha frente.
Faixa amarela contínua. Visão perfeita de nenhum outro veículo na contramão.
Seta à esquerda, saí, ultrapassei, seta à direita e voltei à minha mão de direção. Cá dentro o martelo nos miolos dizendo:
- Defecaste!
Mais à frente a viatura escondida e o sinal do rodoviário mandando parar.
- O senhor sabe por que eu o parei?
- Sei! Disse-lhe eu.
- Mas não posso dizer! Pensei cá com meus botões e martelos, entregando-lhe os devidos documentos.
Ele ainda tentou ganhar tempo fazendo sinal para que dez ou doze motociclistas parassem também. Foi para a traseira do veículo oficial redigir o auto de infração. Fiquei junto ao meu.
- O senhor vai assinar o auto?
- Vou!
- Se não quiser não precisa!
- Quero!
- Vai querer uma cópia?
- Lógico!
- Obrigado e boa viagem! Disse-me entregando uma das vias da notificação.
Depois me perguntaram: Porque não o acompanhou até a traseira da viatura para “conversar”? Porque não disse que era policial aposentado? Ele não multaria!
Pensei nas centenas de caminhões com sobre carga e nas “gratificações” que pagam para trafegar destruindo as estradas e provocando tantos acidentes. Pensei nas mutretas políticas, na corrupção, nos superfaturamentos e nas sonegações fiscais.
Pensei nos pontos na CNH e na grana da multa.
Pensei nas cagadas que já cometi, algumas maiores que essa, e nas torturas mentais a que me submeti por conseqüência.
Pensei no meu pai e na minha mãe e no que devo ter ensinado aos meus filhos.
O martelo dizendo “Paga otário!”. “Dane-se imbecil!”. “Eu tentei te avisar que ia dar merda!”.
Meu pai e minha mãe não ultrapassariam se vivos fossem e se dirigissem.
- Cabrito bom não berra! Diria meu pai.
- Berra prá dentro! Diria eu.
O martelo, que deve ter herdado parte do gênio dele, finalizou:
- Vai fazer falta né idiota? Paga cabrito!
O MP3 do carro, que eu tinha desligado quando parei, permaneceu desligado o restante da viagem. Cagada custosa dessas com trilha sonora é demais!
Já me bastava, inundando o cérebro, o escandaloso BBBBBBBBBÉÉÉÉÉÉÉÉÉ!

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Celebração.

Anteontem, oito de junho, completou-se mais um ciclo que se repete há dois anos. Dia do acidente, dia das mães, aniversário da Márcia e aniversário do casamento. “Comemoração”, se esse é o termo para a passagem das datas cravadas na memória, do nada que há para comemorar.
Como das vezes anteriores, faz um frio terrível, chove e floresce a Astrapéia. O tempo e o Universo continuam rolando suas rodas como uma roleta de um grande cassino que mantém suas portas abertas durante as vinte e quatro horas de todos os dias de todos os anos. Partem uns apostadores e chegam outros. Revezam-se os croupiês, mas ambos (universo e tempo) continuam dando as cartas independentemente da nossa vontade, insignificância e transitoriedade. Pior, ou melhor, ainda. Independentemente da nossa imensa prepotência por acharmos que somos muito mais importantes ou duradouros do que as mais reles bactérias.
Julgamos que o fato de pensarmos, escrevermos ou falarmos (mal e porcamente, por definitivamente não querermos ou não podermos nos fazer entender) nos transforma no supra-sumo dos seres, irrogando-nos poderes e eternidades desmoronados pelo universo a cada átimo de tempo (aqui até caberia o mal e parcamente, como queriam os eruditos referindo-se às deusas Parcas ou aos parcos recursos, mas prefiro o popular mesmo sendo injusto com os suínos).
Porque construímos (mal e porcamente, tão somente no jargão popular, já que consumimos e desperdiçamos muito deixando, ainda, resíduos que entupirão e intoxicarão o planeta por milhares de anos, afetando nossa própria descendência) ou porque exploramos nossos semelhantes à exaustão? São essas características que nos conferem a quintessência entre os seres que conosco coabitam esta minúscula bola flutuante?
Golfinhos e baleias se comunicam. Abelhas descrevem a direção e a distância das fontes de néctar e pólen para que as companheiras os encontrem precisamente. Pássaros constroem os seus ninhos. Algumas espécies de insetos vivem em simbiose beneficiando-se mutuamente da convivência, outras constroem verdadeiras cidades como as colméias e os cupinzeiros.
Chupins jogam fora os ovos dos tico-ticos, botando ali os seus, para que os filhotes sejam criados por outros pais. Ermitãos apoderam-se de conchas marinhas abandonadas para seus abrigos. Formigas invadem colméias, matando para saquear. Pais desnaturados, sem-tetos, ladrões, assassinos.
Somos mesmo tão superiores e diferentes?
Porque somos tão semelhantes é que sempre há algo para comemorar!
Há que comemorar o fato de estarmos vivos. Há que comemorar as nossas saudades e as nossas boas lembranças. Há que comemorar a passagem do tempo curando algumas feridas e abrindo outras. Celebrar as nossas poucas virtudes e até mesmo os nossos incontáveis defeitos e erros, se aprendermos alguma coisa com eles. Há que festejar os amigos e os parentes (e como é bom quando estes se transformam naqueles), tanto os que nunca nos abandonaram quanto aqueles que trilharam nossos caminhos por breves momentos. Os que mesmo apontando os dedos para nossas pequenas ou grandes canalhices não nos negaram as mãos para ajudar a erguermo-nos novamente.
E porque a Astrapéia floresce nestes difíceis meses úmidos e frios e tem as folhas cordiformes (em forma de coração) há que celebrar o amor. Mesmo que dure pouco e que doa desesperadamente quando desvaneçe.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Oito de Junho.

Oito de junho. Seriam trinta e sete anos. Com certeza você se lembraria logo pela manhã. Eu não poderia esquecer.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Agradecimento

Muito obrigado à adorada Thais, ao adotado irmão Zé Renato e à, infelizmente (prá mim) pouco conhecida, Chica, com a qual o Fábio tem a ventura de conviver todos os dias na MKT. Pelos comentários e pelo incentivo para voltar a postar depois de um longo e tenebroso inverno mental.

Salve a Música Popular Brasileira - Rio de Maio

Há algum tempo tinha decidido escrever aqui algumas coisas sobre letras da chamada Música Popular Brasileira. Que me desculpem os admiradores das coisas tipo “minha éguinha pocotó” (parafraseando Vinícius – “beleza é fundamental!”), mas existem canções que entram imediatamente em sintonia com aquilo que estamos sentindo ou vivendo no exato momento em que as escutamos. Há que prestar atenção e há que se deixar levar pela viagem que as palavras proporcionam. Já utilizei aqui algumas dessas poesias que pareciam ter sido escritas para momentos específicos meus e não dos autores.
Dois de junho, final da tarde, começo de noite. Olhei o maço de cigarros (que voltei a fumar - outra das minhas cagadas destes tempos) e calculei que não haveria o suficiente para esperar até o dia seguinte. Dia em que a Márcia completaria cinqüenta e seis anos. Dia em que fiquei enfurnado no sítio todo o tempo (como em muitos outros dias). Liguei o MP3 do carro e, na volta, entre o frio e a umidade, me visitaram o Ivan Lins e a Jane Monheit cantando “Rio de Maio” (do Ivan e do Celso Viáfora):

“Rio, as pedras pulsam na manhã grená.
Frio, vejo arrepios na pele azul crepom do mar.
As folhas caem no Jardim de Alá!
Ah! Por que, no outono, o coração dói mais?
Rio, o verde vibra na manhã lilás.
Frio, Copacabana é um cartão postal vazio.
E o batimento das marés é blues, jazz.
O sol enfeita a zona sul de luz, em vão, em paz.
Pardais passeiam sobre o Vidigal em paz.
Flamingos flanam na Rocinha em paz.
O Rio de maio acorda quase em paz.
Bem perto de mim,
Dois sabiás se amam, perto de mim.
Adolescentes beijam, perto de mim.
Ai que saudade de você e de mim,
dos beijos de amor na tarde sem fim.
Se fosse um filme a nossa vida era assim:
um beijo imenso e o mar cantando Jobim
Um grande amor se reprisando a vida inteira.
Tom, as pedras pulsam na manhã grená.
Frio, vejo arrepios na pele azul crepom do mar.
As folhas caem no Jardim de Alá.
Ah! O outono faz o coração doer demais...”

Nem manhã, nem luz, nem mar. Nada de Rio, de Jardim de Alá, de Copacabana, Vidigal ou Rocinha. Na noite já escura, nem pardais, nem sabiás e, muito menos flamingos (que aqui não os há). Nada de pássaros se amando, nada de adolescentes se beijando. Apenas e tão somente o breu da noite levemente cortado pelos faróis do carro, o frio, a umidade e a solidão. O mesmo trecho da estrada negra que ainda me dá calafrios.
Noite fria, Miracatu, Musácea, local do acidente e, de repente, me surge a belíssima voz da Jane projetando a manhã ensolarada das praias do Rio. O mar, as ondas e os sons do Jobim. O blues, o Jazz, as folhas caindo, a paz. A lágrima.
Ai que saudades de você e de mim!
Ah! Porque, no outono, o coração dói mais?