sábado, 19 de junho de 2010

Da normal e corriqueira deglutição de batráquios.

As coisas nos vão sendo empurradas garganta abaixo, assim de mansinho, até que um dia, quando nos olhamos no espelho, logo pela manhã, durante a primeira escovadela de dentes, damos com um dos dedos do pé traseiro de um grande e gordo sapo entalado entre os dois dentes centrais superiores da nossa própria boca.
Pior! Muito pior! Quando escancaramos os maxilares à procura do restante do referido anfíbio, nada mais encontramos.
Fica, inicialmente, a dúvida sobre o destino do bicho. Teríamos, durante a noite ou madrugada anterior, quando estávamos com a boca arregalada, roncando e, quiçá, babando, apanhado com os dentes a pata do animal quando este já escorregava garganta abaixo ou a mordida e amputação ocorreram quando o pobre já fugia apavorado buscando insetos em outros locais menos ensalivados?
Voltamos correndo ao quarto, à cama, ao criado mudo. Levantamos travesseiros, lençóis e cobertores. Abaixamo-nos para observar sob a cama. Ficamos ali naquela posição constrangedora, a mercê dos inimigos, ou, como dizia meu pai, na posição em que Napoleão perdeu a guerra e nada. Se existia algum sapo, e o dedo entre os nossos dentes é prova cabal e irrefutável, não se encontra mais dentro dos nossos aposentos.
Para piorar, e tudo pode piorar, nos acomete uma maldita sensação de peso no estomago. Por mais improvável que possa parecer, chegamos até mesmo a ouvir um ou outro intestino coaxar e parece-nos que alguma coisa tenta desesperadamente sair pelo que deve ser a cicatriz interna do nosso umbigo (sim, porque deve existir uma do lado de dentro, da mesma forma como existe esta no meio das nossas barrigas, do lado de fora).
Não adianta enfiar o indicador e o médio até onde estão, ou deveriam estar, nossas amídalas, numa desesperada tentativa de regurgitar. Pode vir o almoço e a janta de ontem. O bicho fica.
Não adianta ainda sentar-se no vaso sanitário e aguardar a saída, como fazem os traficantes internacionais de cocaína. O bicho não sai. Lá está e lá permanece.
Não se desespere, entretanto. Assim como tudo na vida, essa desagradável sensação também passa. Um dia após o outro, uma semana depois da outra e, quando você se dá conta, já faz parte de sua vida. Fica-lhe parecendo que o batráquio era genético. Já estava no óvulo ou no espermatozóide que lhe deram origem.
Relaxe, depois de algum tempo, ao observar-se pela manhã, no espelho, você percebe, como eu, que continua com a mesma normal aparência aparvalhada que possuía antes.

sábado, 5 de junho de 2010

Iojun

Poderia dizer que se trata de uma palavra japonesa e definir um significado para ela. Não seria de todo uma má idéia. No caso presente, a melhor definição para iojun seria período doloroso, dias sofridos, difíceis, que voltam de tempos em tempos, mas que sempre deixam antever a possibilidade da libertação, da alforria.
Ocorreu-me hoje, três de junho. Acordei cedo e o dia amanheceu com aquela chuva fraca de ficar na cama. Na impossibilidade, bateu aquela sensação de friagem que corre pelo corpo nos dias de tempo nublado, úmidos e solitários. Meio característicos do mês de junho.
Não é de hoje. Vem destes tempos de difíceis questionamentos e embaçados ou obscuros projetos de dias vindouros. Vem do recente primeiro aniversário da radical mudança da minha vida. Do primeiro ano, depois de quase quarenta, sem a presença da companheira. Da visita ao cemitério. Da lápide fria, com plaqueta erroneamente escrita. Das três rosas brancas lá encontradas. Da missa com a menção do nome dela. Final de maio.
Tem a ver com ontem, data do aniversário, dia em que faria cinqüenta e cinco anos e não fará. Tem a ver com o próximo dia oito quando ela, com absoluta certeza, me acordaria comemorando o aniversário de trinta e seis anos de casamento. Inicio de junho.
Tem a ver com imagens abstratas. Daquelas com as quais a nossa visão e razão não atinam, de imediato ao menos, com o significado. De carências. De procuras por objetivos indefinidos. De buscas por tesouros desconhecidos com mapas ilegíveis.
Tem a ver com poesia concreta, que me perdoem Décios, Haroldos e Augustos, ou talvez, mais propriamente, com Hai-kais. Estes necessitam três versos e 17 sílabas. Imagem, concisão e objetividade. Na minha cabeça nada mais conciso, nada mais hai-kai. Hai-kai do hai-kai: Iojun .
Io, fim de maio. Jun, começo de junho. Período que abrange os dias, noites, frios, solidões, céus sombrios e nublados que ocorrem, não necessariamente apenas, entre vinte de maio e oito de junho. Cores frias, azuis e verdes. Não somente, entretanto. Desejo e expectativa de dias e noites menos frias e menos solitárias. Cores quentes num dos cantos do quadro. Leves, mas esforçadas faixas de amarelos, laranjas e vermelhos solares invadindo esperançosamente a imagem. Pequena, concisa imagem. Redentora resgatando a nave abandonada no imenso oceano.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Píncaros e precipícios.

Vivemos nas montanhas peruanas.
Algumas vezes subimos aos picos mais altos. Passamos por cima das nuvens brancas. Ficamos com a impressão de estarmos sobre um colchão de algodão. Um gigantesco colchão de algodão doce recém retirado dos carrinhos com rodas de bicicletas e vidros iluminados por lampiões a gás.
Achamos que poderíamos nos deitar ali e que as nuvens nos suportariam. Ficaríamos deitados de barriga para cima contemplando o azul do infinito com a paz semelhante àquela que se adquire depois de amor bem feito.
Nos sentimos em Machu Picchu e julgamos que nossos sentimentos e felicidade perdurarão como perdura a milenar cidade. E mesmo que se desgastem, sobrarão, ainda, ruínas tão belas como estas que contemplamos, o que ainda seria formidável e digno de cuidadosa manutenção.
Por vezes capotamos precipício abaixo. Assim, sem prévio aviso, sem placa e sem sinal luminoso de advertência. Vamos rolando e caindo, ferindo-nos nas pedras pontiagudas do penhasco. Do alto ao fundo pensamos como isso pode ter acontecido. E a insatisfação, a sensação de impotência e as dores nos fazem crer que não há escapatória. É chegar ao final do poço. Dar com a cara no lodo acumulado. Tentar levantar a cabeça e erguer os olhos na busca de onde estivemos antes da falta de atenção e do escorregão. Tentar buscar o calor e a luz do sol que se encontram além do distante circulo de luz da borda, acima de nossas cabeças. Tentar se por em pé para manter os olhos, os ouvidos, as narinas e a boca fora desta água estagnada e apodrecida.
Por vezes imagino sermos guiados por algum equipamento eletrônico. Se é o ar puro das montanhas que inunda nossos peitos, então é hora da rasteira, do rabo de arraia, da pernada, da casca de banana à frente dos nossos pés e lá vamos nós ladeira abaixo. Se for o podre da água e da lama das profundezas que nos encharca, então somos empurrados para cima pelas nossas lágrimas. Quase sempre, entretanto paramos alguns degraus abaixo de onde estávamos antes da queda, exatamente assim como uma bola de borracha largada do alto que a cada batida no chão sobe menos que da vez anterior até imobilizar-se numa depressão do terreno.
Na impossibilidade de permanecermos no topo ou na falta de vontade para lutarmos por ele, talvez seja o caso de, como se diz, parar por cima. A continuação pura e simples, sem um esforço em contrário, por uma lei fundamental da física, nos levará, inapelavelmente, ao fundo sombrio e triste do buraco.