sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Pedaço de Mim / Retalhos

PEDAÇO DE MIM
(Chico Buarque de Holanda)

Oh pedaço de mim
Oh metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar.

Oh pedaço de mim
Oh metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais.

Oh pedaço de mim
Oh metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu.

Oh pedaço de mim
Oh metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi.

Oh pedaço de mim
Oh metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo A mortalha do amor, adeus.



RETALHOS
Oh pedaço de mim,
Oh metade adorada, amputada e arrancada de mim,
Não leva, deixa o teu olhar, os teus sinais, o vulto teu, o que há de ti
E lava os olhos meus.
A saudade é a pior tormenta num barco.
É o revés de um parto.
A dor latejada do pior castigo.
O esquecimento que aos poucos descreve um arco.
A saudade é arrumar o quarto.
É assim como uma fisgada que teima em ficar comigo.
É pior do que se entrevar ou ficar atracado no cais.
É um filho que já morreu ou um membro que já perdi.
Não sei como não levar comigo a mortalha do amor. Ah, Deus!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Manhã de finados

Hoje amanheceu chovendo.
Aquela chuva fina, mansa, fria e persistente dos dias de finados.
Não estou ainda completamente alienado, sei que estamos em setembro, um domingo, dia 20. Sei que ando confundindo os dias da semana como se as feiras fossem as mesmas, de segunda a sexta. Sinto também que os sábados, domingos e feriados estão todos com as mesmas caras exceto quando alguém me visita.
Há exatos quatro meses uma rápida cirurgia nos separou impiedosamente e a imagem que sempre me ocorre é a das operações para separar gêmeos siameses, ao contrário, sempre muito demoradas.
Diferentemente dos irmãos que nascem juntos, um casal vai se juntando aos poucos. As arestas vão sendo aparadas. As peças a serem coladas vão se amoldando uma a outra, todos os dias um pouco mais.
Na separação dos irmãos, mesmo quando um deles não resiste à cirurgia, o que sobrevive passa a viver melhor, liberta-se. Ganha a sua individualidade.
Na separação de amantes tão ligados, o sobrevivente é parcialmente sepultado. Vai-se embora a expectativa de outros dias felizes, vai-se embora a convivência de todas as horas, boas e más. Some até mesmo a conivência de quem conhece tão bem não só as qualidades, mas também os defeitos do outro. Foi-se embora o planejamento de velhos caminhando abraçados ou de mãos dadas pela areia da praia. Fica a necessidade de construir novos vínculos, novas relações e novos caminhos para os quais não conseguimos encontrar mais coragem, disposição, ânimo, saúde ou tempo. Os dias contigo tinham manhã, tarde e noite. Os sábados, domingos e feriados nos encontravam juntos o tempo inteiro. Tinham cores e sabores diferentes. As comidas de hoje prestam-se tão somente à alimentação, deixaram de lado o prazer. As cores tendem para o cinzento. Exatamente como costuma ocorrer nas manhãs chuvosas dos finados.

domingo, 20 de setembro de 2009

Márcia, quatro meses de ausência.

Ontem, quando estava entrando no banho, caiu uma chuva forte, com raios e trovoadas. Pensei em deixar para mais tarde, mas como o barulho dos trovões estava distante julguei que daria tempo se eu fosse rápido. Quando terminei de me ensaboar (ou ensabonetar), acabou a energia. A completa escuridão, a água fria e a espuma espalhada pelo corpo todo, me deram uma dimensão destes tempos.
Chuvas, raios e trovoadas, escuro, frio, solidão e abandono tem sido meus parceiros e parceiras desde a tua partida.
Acendi uma vela e, por desencargo de consciência liguei para a Elektro (não sei como, o telefone ainda funcionou por uns minutos). A atendente disse que o retorno estava previsto para as 22:00 horas. Coloquei para cozinhar um arremedo de sopa e sentei no sofá da sala ao lado de inúteis controles remotos de televisor, vídeo e antena. Cercado pela parafernália elétrica e eletrônica fiquei contemplando a chama alaranjada da vela como faziam os homens das cavernas diante das fogueiras.
Pensei nos meus plantões noturnos e nas vezes que essa mesma situação deve ter ocorrido quando você estava sozinha.
A chama bruxuleante da vela, os barulhos no forro e no telhado, os pingos da chuva nas telhas e nos vidros das janelas, o vento assobiando nas folhas das árvores e dos bambus, os clarões assustadores dos raios rondando o quintal e o som dos gigantescos tambores dos trovões que parecem chacoalhar a casa.
Não foi o medo do escuro que me fez chorar. Foi ter te feito passar por isso sem estar ao teu lado. Foi não ter corrido para esquentar água para o fim do teu banho. Foi não ter dito alguma bobagem só para que você soubesse que eu estava ali no escuro e não ter te levado uma vela ou uma lanterna. Foi não ter ficado ali abraçado contigo olhando a chama da vela ou fazendo figuras com as sombras na parede. Foi ter permitido que por algumas horas, nas irrecuperáveis noites dos plantões, você pudesse ter sentido ainda que uma pequenina parte desta monstruosa solidão. Se soubesse o que sei agora e se o tempo voltasse, eu não te deixaria uma única noite sozinha, para que não houvesse a menor possibilidade de você passar por isto.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Passeios com Felipe.

Esta semana estivemos, eu e meu neto Felipe, na casa de minha cunhada Anatel.
Ficamos mais uma semana sem sinal telefônico e resolvi visitá-la.
Enquanto conversávamos, na varanda, a respeito dos inúmeros problemas que ocorrem nas telecomunicações, e que prejudicam sobremaneira os moradores das pequenas localidades, Felipe veio correndo, muito assustado, nos apontando para o gramado onde, a seu modo de ver, ocorria uma desgraça.
Um grande cachorro branco tinha trepado sobre uma cadelinha marrom e a estava “machucando”. Para corroborar essa impressão do menino, a cadela gritava sem parar. Eu fiquei meio sem jeito, mas Anatel sorriu.
Enquanto tentava encontrar as palavras adequadas para explicar, a uma criança tão pequena, o que ocorria, Anatel tomou a dianteira:
- Queridinho, não é nada não. Telefonica só vai estar fodendo a Clientela!
- Porra Anatel, assim não, devagar com o andor! – esbravejei eu – E ainda por cima no gerúndio?.
Sacudindo os ombros, minha cunhada esclareceu que o grande cachorro branco era filho de Telefo e de Nica, casal de cães de origem européia, e Clientela era uma cadelinha criada ali mesmo no bairro.
Clientela estava amarrada a uma corrente e não poderia fugir dali. Já Telefonica vivia em liberdade, à vontade, e podia fazer o que lhe desse na telha.
Quando nos despedimos, Felipe se negou a beijar a "tia".
Já no caminho de volta, com a cara amarrada, me perguntou:
- Porque a Clientela tava presa?
Antes mesmo que eu respondesse, soltou outra:
- Não gosto da Anatel!