sexta-feira, 26 de junho de 2009

A Márcia (x) absolutamente especial.

Senti vontade de dizer dessa condição de peculiaridade dela ao reler, como já o fiz tantas vezes, algumas das coisas que ela mandou pra mim pelo celular. Continuo mantendo ligado o celular que ela usava. Continuo lendo os vários “eu te amo” e a mensagem que me mandou no dia do meu último aniversário. Estão gravadas na memória do aparelho.
Lendo e lembrando-me das palavras que dizia, é que me veio a convicção de que especial é a pessoa que consegue encontrar atributos em outras pessoas. Não bastasse encontrar tais atributos, ou não existentes ou, ao menos, escondidos ou comuns, essa pessoa, verdadeiramente especial, as divulga e propala dando ao portador esse rótulo de diferenciado.
O especial é o portador dessa humildade e dessa generosidade que dignifica o outro.
É como se o drible desconcertante fosse totalmente insignificante sem a torcida que o aplaude. Como se a jogada magistral fosse feita no interior de um quarto escuro, sem que a platéia pudesse vê-la. Não é a jogada que é admirável, é a luz que nos permite vê-la. É o espectador e o aplauso que tornam o ato magnífico.
Minha luz e minha torcida, meu incentivo, meu aplauso.
Essa é a pessoa que me acompanhou nos últimos trinta e cinco anos de casados.
O “x” do título é, mais do que uma indecisão, uma imposição dada pela palavra “ser” que eu pretendia usar.
Minha intenção inicial era colocar um dos tempos do verbo. Pensei no passado e estava entre o “era” e o “foi”. Entretanto, da maneira como ainda a sinto nos meus dias e noites, julguei melhor utilizar o presente “é”. Logo depois achei que seria o caso de usar todos os tempos “foi, era, é, será” ou apenas o próprio verbo “ser”. Aí surgiram as conotações do substantivo “ser”: individuo ou pessoa, ente ativo, animado, vivo, existente. Como numa sentença matemática ficou o “x”. Podem mudar os valores ou as palavras citadas. Os resultados são iguais ou equivalentes: Uma pessoa absolutamente especial

sábado, 20 de junho de 2009

Cometa loucuras

Diga a quem você ama que a ama. Diga com freqüência, mesmo correndo o risco de parecer piegas. Dane-se a opinião alheia. Diga pelo celular, onde você estiver. Por e-mail, por carta, com envelope, selo e papel escrito à mão. Nunca corra o risco de ter dito menos do que devia. Nunca corra o risco de ser surpreendido não podendo dizer mais, nunca mais.
Ame na cidade, no campo, no litoral. Na casa, na cama, no tapete da sala de estar, na varanda, na rede. Ame na mesa de jantar, no tanque, na banheira, no banho. Ame à noite, de madrugada, durante o dia, antes de sair para trabalhar. Surpreenda, cometa loucuras!
Saia para passear. Saia pra lugar nenhum. Caminhem juntos. Saia de carro, pegue uma boa estrada, pare pra tomar um café e volte. Saia para um almoço ou jantar ou mesmo para um café da manhã. Convide-a para umas ostras gratinadas, para escargots, para queijo gorgonzola, azeite extra virgem e pão fresco, alguma coisa que ela não esteja esperando. Tome um vinho, mesmo que ela escolha um vinho licoroso e não o tinto seco que você mais gosta.
Ande de mãos dadas, não importa a idade que você tenha. Abrace. Beije, acaricie.
Saia pra tomar chuva. Na volta tome um banho quente. Juntos.
Discuta, se houver absoluta necessidade, geralmente não há. Sozinhos, para que ninguém saiba. É impossível concordar sempre, mesmo que seja com você mesmo, diante do espelho. Faça as pazes o mais rápido possível. Comemore o reencontro, mesmo que a ausência não seja longa. Dê presentes, ainda que seja uma flor simples encontrada à margem do caminho. Quem recebe sempre gosta, mas geralmente quem oferece fica mais gratificado.
Pode ser que alguma calamidade aconteça e elas sempre acontecem sem que ninguém espere, sem prévio aviso. Normalmente duram uma fração de segundo e vão repercutir por todo o resto de sua vida. Pode ser que você não tenha mais nenhuma oportunidade de fazer quaisquer dessas pequenas ações.
Se a pessoa, objeto de seu amor, puder se recordar, onde estiver, em qualquer dimensão, de alguma dessas ditas “loucuras”, por certo será com a certeza de que foi muito amada.Você, certamente, vai sofrer e vai chorar. Chorará a saudade do que viveram e a perda do que poderiam ter. Sentirá, todos os dias, a falta do que ainda teria. Terá, contudo, muito do que se recordar. Ouvirá o testemunho daqueles que algum dia os viram juntos e felizes. Sobrarão as recordações e a saudade. Sobrará a certeza de que amou verdadeiramente.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O universo não cumpre acordos

As flores dessa foto foram colhidas no dia oito de novembro do ano passado. Tínhamos saído para caminhar e, na volta, as colhi para dar a ela. Como era aniversário de namoro e de noivado (trinta e seis e trinta e cinco respectivamente), achei que caberia o gesto e o humilde presente, ainda mais que ela, provavelmente, não imaginava que eu me lembraria.
Essas plantas, apesar de muito comuns próximo do litoral, não existiam por aqui e resolvi apanhar as que julguei mais viçosas. No total consegui cinco flores e disse a ela que cada uma representaria dez anos de noivado, a contar do início, em 1973. Comigo, com meus botões e com o Universo combinei de colher outras tantas neste ano, renovando o pacto, com medo de fixar em apenas cinqüenta anos o prazo selado ali. Estaríamos então beirando os setenta anos, um pouco mais e um pouco menos, e acompanharíamos o crescimento dos netos.
Sempre achei que os filhos são a grande oportunidade de entendermos nossos pais. Com os nossos erros é que entendemos e perdoamos os dos nossos pais. Com nossos filhos é que temos a certeza de que grande parte daquilo que julgávamos castigos, excessos ou cuidados demasiados dos nossos pais, era na verdade amor. E se eles ainda forem vivos temos a maravilhosa oportunidade de agradecer-lhes e eventualmente desculparmo-nos uns aos outros.
Se nos for dada, então, a oportunidade de acompanhar o crescimento dos nossos netos, poderemos servir de intermediários nessas pequenas, ou grandes, desavenças ou atritos e, quem sabe, tudo ficaria mais fácil.
Esse contrato tácito beneficiaria, portanto, a mim principalmente, pela desejada companhia, mas também aos filhos, às noras e aos netos e, com certeza aos demais parentes e amigos.
Infelizmente não adiantou e, pior, não há instância ou tribunal a quem reclamar.
Por mais corretos e necessários que sejam os acordos, o universo não os cumpre.

domingo, 14 de junho de 2009

Cama polar

Não sei por que cargas d’água sempre dormi do lado esquerdo.
Não sei se há algum estudo sobre isso. O lado que os casais escolhem pra dormir.
Por ser canhoto e usar esta mão para desligar o despertador? Mesmo depois que você passou a controlar o relógio, mantivemos os lados originais, independentemente de camas, casas ou lugares. O braço esquerdo livre para os afagos ou, antigamente, mais próximo do cinzeiro? As poucas vezes que mudamos, não nos sentíamos confortáveis.
Muitas vezes uma cama de solteiro bastava pra nós dois. Até mesmo um sofá na sala, como aquele da Vila Mariana, o primeiro, aquele de madeira aglomerada, maravalhas ou raspas de madeira coladas, disfarçado e vendido como móvel laqueado, que não resistiu à primeira estripulia e que durante alguns meses apresentou uma lata de óleo como suporte ou escora da travessa frontal remendada. Nossas camas de casal muito mais resistentes. A de São João Novo, que construí com pinho do Paraná e cujo estrado dura até hoje.
Me dei conta disso, mais detidamente, agora, depois do acidente. Com as costelas quebradas do lado direito, só me é possível deitar de costas ou sobre o lado esquerdo. Eu que me virava diversas vezes à noite e desmanchava totalmente a sua arrumação dos lençóis.
Todos estes dias, já com o frio de junho, não consegui virar-me para o seu lado para ter certeza de que você não estava lá. Meu braço te puxando pra junto de mim ou, a contrapartida, teu peito aquecendo minhas costas. Perfeitos e aquecedores encaixes.
Algumas vezes ainda tento virar-me e estico o olhar para o lado direito.
A constatação é dolorosa e solitária.
Aquele lado da cama parece uma extensa planície polar, gelada.
Inapelável e implacavelmente desabitada.
Todas as noites me sinto como um daqueles desbravadores solitários dos pólos. Com a incerteza de chegar vivo ao amanhecer ou morrer enregelado.
O explorador, ao final, comemora a glória do pioneirismo. Aqui, ao cabo de cada jornada noturna, nada há a comemorar.
Há apenas a expectativa de uma nova noite.
Outra gélida e dura travessia e uma gigantesca saudade.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Minha metade partida

Éramos duas metades de um.
A metade que se foi era a que sabia de mim, das minhas coisas.
Era a que sabia dos meus compromissos, das minhas vestes,
cortava meus cabelos e minha barba.
Cuidava do meu corpo e da minha alma, lustrava o meu ego.
A metade que partiu é a que exclamava “nossa!”, “hummm”, “ficou bom!”.
Que fazia cara de espanto e dizia ter gostado de um escrito, de um quadro, de uma gravura, de uma comida, fazendo-me crer que era verdade.
A metade que mais gostava de mim me foi tirada.
A metade que ficou dependia da que se foi!
Sobrou esta, que caminha desnorteada, deambula.
Quem vê esta metade, não a vê metade.
Imagina que é um corpo inteiro.
Meio acabado, mas íntegro.
Sequer supõe uma metade faltante, vazia.
Diferentemente dos amputados, minhas roupas,
mangas de camisas e pernas de calças, não pendem
ocas balançando ao sabor do vento.
Aparecem aos olhos alheios como se todos os membros e partes do corpo continuassem fazendo parte do conjunto.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Bodas de Fel

O casamento ocorreu há exatos trinta e cinco anos, dia oito de junho de 1974. No dia dois ela tinha feito dezenove anos e eu, em dezembro do ano anterior, vinte e quatro. Meus pais já estavam morando em São Vicente e a festa foi realizada na casa dela, em Tremembé, perto da Cantareira. Algumas das fotos mostram pessoas que nunca mais vi. Outras que continuaram sendo colegas de serviço por algum tempo e outras, muitas, que também já se foram.
Lembro-me da viagem para Santos, da lua de mel no apartamento emprestado da avenida da praia, no Gonzaga. Depois, do apartamento que alugamos na Vila Mariana. Da chegada do Diogo e da mudança para São Roque, onde nasceram o Bruno e o Fábio.
A vinda para Musácea com o Fábio de colo ainda. A permanência numa barraca de camping durante a construção da casa e os apuros que passamos, principalmente ela, durante a fase mais difícil aqui.
Tempos de absurdas dificuldades que encaramos como parte de um sonho, talvez mais meu do que dela, de criarmos os filhos longe da violência da cidade grande. Coisas daquela época de alimentação macrobiótica, cultivo da terra sem pesticidas e sem adubos químicos, ar respirável, céu e estrelas visíveis todas as noites. O apoio, a retaguarda e as dificuldades que somente a amiga e companheira, muito mais que esposa, suportaria. Nenhuma queixa e nenhum desânimo visíveis. Apenas doação. A época das plantações e colheita. A época da minha perna quebrada, a ponta da muleta afundando na terra sempre que eu procurava ajudar. A sensação de absoluta inutilidade. A permanência sozinha, com as crianças, quando fui para o hospital.
A ligeira melhoria quando passei a dar aulas. O concurso para Escrivão. Vida um pouco melhor, mas ainda assim muito distante do padrão que tínhamos em São Paulo ou São Roque. As campanhas políticas. Minhas queixas do trabalho. Seu ouvido, consolo, apoio e suporte. Reclamação nenhuma.
Os filhos se mudando para estudar ou casar. Um sítio e uma casa ficando grandes demais, apenas pra dois. Minha aposentadoria e os planos para aposentadoria dela. A chegada dos netos e a vontade dela de ir para mais perto deles. O cansaço do serviço. As viagens planejadas. Os planos, as coisas para a casa, as plantas e flores que ela cultivava.
O acidente, o tsunami, a catástrofe. A irreparável perda. A súbita retirada dos meus apoios e suportes, a perda do equilíbrio que alguns médicos chamaram de labirintite causada pelo acidente. Absurdo erro médico. Qualquer ser humano teria tonturas e cairia se lhe tirassem a parte direita do corpo que o houvesse mantido em pé por trinta e cinco anos.
Trinta e cinco anos.
Bodas de dor, de falta, de amargor, bodas de solidão. Bodas de dolorida ausência. Bodas de lágrimas. Bodas de como eu gostaria que você estivesse aqui.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Caem fichinhas todos os dias

Não são as grandes coisas que mais fazem falta. São as pequeninas que mais dão o sentido da perda. São inúmeras as fichinhas que caem. Não uma única.
É o deitar no sofá da sala, para ver televisão, e adormecer. É o levantar depois e dizer que ia deitar-se ao que invariavelmente eu respondia que ela já estava deitada. É o sorriso em seguida e o “vou pra cama” sempre acompanhado do beijo e do “vem logo”.
É o “vem senão a comida esfria”.
É o “invadir” o banheiro pra tomar banho junto.
É o dormir como conchas para encarar o frio como este destas noites solitárias de junho.
É o aguardar a chegada da escola, coisa que os cachorros ainda continuam fazendo olhando na direção da entrada do sítio, no horário do ônibus (algumas vezes olho também).
É o cochilar nas viagens de carro e o passar a mão carinhosamente sobre minha perna direita, quando algum solavanco a despertava.
É o corar e o rir de qualquer coisa depois de meio cálice de vinho.
Não é o caráter, a bondade e a personalidade, com as quais tínhamos aprendido a conviver.
Eram as ditas bobagens, as coisinhas miúdas, corriqueiras, intimas, do dia a dia.
Estas é que dão o tom da perda e transformaram o acidente em catástrofe.
Não é a dor das costelas quebradas e nem a falta de equilíbrio ou labirintite (provisórias, segundo dizem). Não são os pequenos ferimentos na cabeça ou no braço, já cicatrizados. O que dói são essas pequeninas dores como que causadas por finas e pequenas agulhas. Milhares delas cravadas pelo corpo.

E a vida continua

No final de maio, assim como numa homenagem, começaram a surgir as flores das astrapéias (cientificamente dombeyas). Primeiro apareceu uma flor da astrapéia branca, completamente aberta no dia 27 de maio como que numa celebração, ou missa, de sétimo dia em homenagem à Márcia. Depois, nos dias seguintes, outras brancas e um sem número de astrapéias rosas, como numa panela de pipocas, começaram a espocar oferecendo suas cores, seu perfume de mel, seu pólen e seu néctar aos mais variados insetos e aos beija-flores.
Em seguida, as próprias flores, os insetos, as aves, o céu, o sol demorando a esquentar e a solidão do sítio, sem a presença física dela, é que me deram a noção da nossa insignificância.
Todo início de junho é assim. Basta esfriar o tempo e as flores voltam. E voltam as abelhas, as formigas, os pássaros, o néctar, o pólen e o perfume. As gotas de néctar que caem ao mais leve chacoalhar das flores, não são lágrimas adocicadas que se contrapõe às minhas, salgadas. São, como há milhares de anos, gotas de néctar.
Não importa quão grande seja a nossa dor e o nosso sofrimento. O universo continua em movimento. Nosso pequeno planeta continua girando em torno do sol. Nosso país, nosso estado e nossa cidade continuam como se nada tivesse acontecido. Nossas ruas, nossos amigos e nossos parentes, mais próximos ou mais distantes, após o primeiro direto de esquerda, se agarram nas cordas ou recebem o auxilio do árbitro e continuam lutando por um ou mais rounds, até que a própria luta, aquela que travam pessoalmente, se encerre.
O que marca, o que vale, pra quem partiu é o que fizemos. O pequeno gesto, o pequeno carinho, uma frase de agradecimento ou de apoio. Depois talvez valham as orações e as lembranças. Para os que ficam valem as recordações e as saudades.
Quase sempre eu apanhava a primeira flor de astrapéia rosa que aparecia e a entregava a ela. Ela agradecia, me beijava e a colocava num copo com água.
Este ano fiz a mesma coisa. Coloquei a flor num copo com água e ela já está secando.
Não houve agradecimento. Não houve beijo. Não houve a menor graça.
Nada do que eu faça consegue mover o universo para trás, minutos antes do acidente, no dia 20. Absolutamente nada. Absolutamente impotente e insignificante.